NÃO TEM MESMO JEITO?
Um dia, a bicharada percebeu que as coisas não iam bem. Faltava de tudo:
comida, água, espaços para lazer e... e... e...
Os mais corajosos resolveram, então, convocar uma assembléia geral. A
notícia correu de boca em boca, sem que a turma do poder (imaginavam) sequer
desconfiasse. Quase sempre, ensinava um galo filósofo, o poder cega,
emburrece, se auto-engana.
No dia combinado, boa parte dos bichos compareceu. Estavam presentes sabiás,
urubus, alguns elefantes, ratos, cobras, certos peixes, macacos e tantos
outros. A ausência mais sentida foi a dos camaleões. Afinal, sempre se
mostraram amigos, prestativos, desempenhando, inclusive, serviços
imprescindíveis.
Dona Anta, maior responsável pelo encontro, logo na abertura, soltou o
verbo: "Bichaneiros (tratamento específico entre eles), quem aqui vive
feliz? Dia-a-dia, rumamos para o nada. Somos esfolados até a medula e nos
enrolam com palavrórios arrumadinhos, com estatísticas, com promessas. Não
temos o que comer, nossas águas estão se acabando, espaços para nossos
divertimentos não existem mais. Vamos permanecer de cócoras? Até quando
suportaremos isso, até quando, bichaneiros?"
Tais palavras inflamaram a assembléia, provocando alvoroço momentâneo. O
representante dos urubus tomou a palavra, pediu silêncio, e fez suas
colocações: "Bichaneiros e bichaneiras, são procedentes as afirmações da
bichaneira Anta. Precisamos analisar cuidadosamente os fundamentos de nossa
miséria. Tudo o que tenho visto e ouvido nos meios de comunicação silencia
verdades. Quero lhes dizer o seguinte: estamos infestados por vírus
fabricadores de ilusões, de mentiras. Quantos de vocês têm pleno domínio
daquilo em que acreditam? A fome e a sede não estão para além de nós, não
são abstrações. São reais e doem pra humano! O que, no entanto, dizem? O que
fazem? Tecem teorias acadêmicas, nos dão esmolas com projetinhos paliativos
alçados à categoria de grande engenho. É hora de reagirmos, vamos mostrar
nossa força. Ou nos salvamos a todos ou nosso fim será a extinção".
Aplausos efusivos, gritos de muito bem, apoiado, pipocaram de todas as
direções. Uma velha Coruja, enfitando os demais, vociferou: "Nenhum bicho
inteligente pode temer o confronto, o contraditório, a dialética. Se até
agora nos embriagamos de verdades apodrecidas, velhacas e manipulatórias,
somos, sem dúvida, os maiores responsáveis. À luz da ciência, do bom senso e
da sabedoria, tudo é verificável. Mas preferimos a conivência, o silêncio
deletério, a lógica atoleimada. Olhem bem para aqueles que se denominam
elite. Onde estão agora? Vejam suas casas, repararam na escola de seus
filhos? Viram ao menos um numa fila do INSSB? Por que nossas doenças não são
as mesmas? Por que morremos mais cedo? Por que, enfim, Bichaneiros, os
direitos constitucionais mais justos, mais dignos e bichônicos só funcionam
para alguns? Por quê?"
Mais ovações, mais gritos, mais palavras de ordem. Seguiram-se vários
discursos. Nenhum, porém, calou tão fundo quanto o de dona Formiga: "Irmãos
(sim, não usarei o vocábulo bichaneiro, está desgastado, formal às avessas),
nesta assembléia, tudo o que se tem falado é verdade. Não há um só animal,
aqui, que não traga, no corpo e na alma, as marcas deste mundinho
estarrecedor. Vou ser franca e direta: não basta a tomada de consciência,
isso não é mudança. Estou farta, confesso, dessas análises que mais parecem
para marcar presença. Parasitismo, desfaçatez e despreparo não são a
predominância em nossos líderes? Precisamos, sim, de uma práxis
emancipadora. Aquilo que alguém chamou de "inédito viável". Portanto, irmãos
e irmãs, quais nossas estratégias? Por onde começar? Como agir para as
coisas acontecerem? Ou estão pensando que a empreitada é cosmética,
conjuntural? Panos novos em estrutura arcaica? Eis aí o problema: Estrutura,
irmãos e irmãs, Estrutura, Estrutura." Neste momento, dona Formiga caiu com
o pescoço sangrando, atingida por um projétil silencioso, disparado pelo
bichaneiro Camaleão de uma das árvores próximas.
Assembléia em polvorosa, dissolvida. Silêncio. Camaleão foi ao baile
dos "poderosos" (marcado na mesma data): dançou, comeu, bebeu e recebeu
honrarias. No enterro de dona Formiga, cantos fúnebres, árias tristes, hinos
de louvação heróica entoados por Rouxinóis e Sabiás.
POR QUÊ?
Ele (juro que vi) agachou,
apanhou uma garrafa,
dessas que descem pelos enxurros de lama.
Não a lavou...
Não a enxugou...
Tirou do bolso esquerdo um papel de embrulho,
enfitou o horizonte...
depois rabiscou um sinal,
e beijou, beijou o troféu num gesto de último adeus.
Tudo parecia vão!
A tarde, banguela, morde-lhe a alma,
dilacera as entranhas.
Sua única mobília
(a garrafa)
foi-se, agora, na fúria das ondas.
Uma estrela, sábia estrela, desce e decifra o escrito:
o mar chora...
o mar se encanta...
mas fica nisso.
E ele, ele prossegue,
se arrasta entre lixos,
(isola-se)
isola-se nos silêncios dos aflitos.
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